Se a história da cisão de 1996 fosse uma peça tradicional, esse seria aquele primeiro ato onde mostramos dois lados: um lado com uma vila feliz e perfeita cheia de personagens felizes; e o outro lado, onde vivem os vilões pagãos e adoradores de coisas ruins, encabeçados pela pessoa mais má de todos os tempos.

Antes, uma última consideração: toda essa série de posts não está em ordem cronológica, mas vocês vão perceber isso quando ver o segundo episódio começando numa data (acho que 1989) antes do primeiro episódio terminar (início de 1992).


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O ano de 1989 coroava uma era de crescimento nos campeonatos da CART. Foram quatro anos de crescimento estrondoso em vários aspectos: de categoria com apenas meio campeonato televisionado passou a transmitir todas as suas provas em TV aberta com considerável audiência, todas as provas com patrocínios robustos e o crescimento do público nas arquibancadas acompanhava o aumento da popularidade do automobilismo nos EUA. Nesse ano, a CART comemorava um crescimento de mais de 50% nos ingressos vendidos desde 1985, bem como a média de cinco pontos na audiência televisiva de suas corridas.
""Todos"" ficando ricos na CART.
Esse sucesso meteórico das corridas da CART trouxe uma injeção repentina de muito dinheiro em tudo o que se envolvia com a categoria. As premiações dadas pela PPG, patrocinadora master dos campeonatos da CART, subiu de 11,5 milhões para 15,5 milhões. Estima-se que, em 1989, a Malboro, patrocinadora principal dos três carros da Penske, girava em 8 milhões de dólares.

Isso tudo parece muito ótimo, e realmente é. Pois, com mais dinheiro, todos poderiam investir mais nas competições, além de ficarem mais ricos ou, pelo menos, menos pobres.

Mas essa realidade atingia apenas uma parte do grid. Apenas alguns conseguiram acompanhar esse crescimento estrondoso, outros ficaram no meio do caminho, e a maioria ficou pra trás.

Subitamente algumas equipes tinham muito dinheiro para investir na categoria e exigiam cada vez mais das fabricantes de chassi e motor. Com o tempo, as equipes que não estavam inclusas na dinheirama não conseguiam acompanhar o ritmo tecnológico das principais e foram obrigadas a reutilizar equipamento obsoleto ou optar por marcas que produzissem equipamentos mais em conta.
O grid era grande, mas o dinheiro e a fama estava nas duas primeiras filas.
Sim, isso acontece em todas as categorias onde o dinheiro começa a influenciar, que nem na F1. Mas na CART aconteceu de forma incrivelmente rápida e acabou beneficiando poucas equipes. Em 1986, nosso ano base antes de todo esse crescimento, todos (com exceção apenas de Dale Coyne no ano todo e Phil Krueger em Indy 500) utilizavam chassis desenvolvidos naquele ano, havendo grande equilíbrio entre Lola e March e entre Chevy, Cosworth e até os velhos Buick tinham sua vez. Já em 1989, várias equipes utilizavam equipamentos defasados, incluindo as não-tão-pequenas Granatelli Racing e a AJ  Foyt; também havia uma razoável lacuna entre motores, onde o novo Chevy A era consideravelmente melhor que os motores Cosworth, Judd, Buick e outros. Detalhe: apenas Penske, Patrick, Galles e Newman-Haas usavam os Chevy. Essa grande diferença começou, aos poucos, desgastar as relações das equipes menores com as equipes maiores.

Entretanto, equipes pequenas levam prejuízos e desvantagens desde quando o automobilismo é o automobilismo, qual o motivo das equipes pequenas reclamarem de custos da sobrevivência logo agora? 

Porque parou de terem motivos para continuar. Os custos para colocar os carros na pista aumentaram de forma exponencial, para receberem quase nada em troca. Um exemplo foi a Machinists Union, equipe nanica da CART fundada em 1978, comandada pela Associação internacional dos maquinistas (de trem mesmo) e trabalhadores aeroespaciais e dirigida por Andy Kenopensky. O próprio Kenopensky sempre reclamou dos custos e demonstrou essa escalada de custos: "Antes [em 1985], uma temporada completa custava perto de um milhão de dólares, hoje custa quatro vezes mais. O que tive de prejuízo nos últimos dois anos [1987-88] já soma o quanto gastei para participar do ano de 1987."  Quando isso acontece enquanto se vê equipes e diretores de ponta ficando cada vez mais ricos, é compreensível uma certa revolta por parte dos menores times.

Mas elas são equipes pequenas, o que poderiam fazer?


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Enquanto isso, do outro lado da cerca Indyanística, o Indianápolis Motor Speedway passava por nova presidência. Depois da morte de Tony Hulman em 1977 e de metade dos diretores da USAC num acidente de avião em 1978, John Cooper assumiu a presidência do IMS com o aval da recentemente empossada Grande Rainha Onipresente Mari Hulman-George.
John Cooper é o mais avulso na foto, de pé no canto direito.
Cooper atuou magistralmente bem na conciliação dos desejos do IMS e da então nova CART, e dois anos depois saiu da presidência para um velhíssimo e apagadíssimo Joe Cloutier assumir. Cloutier manteve as coisas como estavam, basicamente, até sua morte em 1989.

O fato é que manter as coisas como estavam não era muito frutífero para os Hulman-George e o IMS pois a audiência, tanto na pista quanto na TV, caía ano a ano. As 500 milhas de Indianápolis, até então o único evento do gigantesco autódromo, ainda tinha todos os ingressos vendidos, mas as suas outras atividades (treinos livres, Pole Day, paradas tradicionais e afins) tinham cada vez menos público assistindo. E como esse era o único mês que o autódromo ficava aberto para corridas, qualquer queda de público resulta numa perda razoável de dinheiro e relevância.

Na TV o caso era pior. As audiências das suas corridas na TV eram consideravelmente mais altas que a sua grande rival nas provas tradicionais americanas, a Daytona 500, mas a partir de 1985, a quantidade de TVs ligadas na prova caiu de modo perigoso. Desde 1980 e sua reformulação, a NASCAR manteve-se entre oito e dez pontos na Daytona 500, enquanto na Indy 500 podemos ver um gradual decréscimo a longo prazo, pontuado por alguns poucos anos de audiência alta:
Audiências da Indy 500 e da Daytona 500 de meados dos anos 70 até 1990.
Menos audiência e menos público afetam não só o bolso dos Hulman-George, mas também a relevância da prova. Cada vez menos pilotos e equipes se inscreviam para as lendárias 500 milhas, e cada vez menos atenção.

A FACETA DO MAL!!!11!!111!1ONZE!!!
Para mudar esse panorama, tentativas mais ousadas de negócios deveriam ser feitas. E, para tal feito, a Grande Rainha Onipresente Mari Hulman-George designou seu filho, Antonio Hulman George II, o novo presidente do IMS em 8 de janeiro de 1990.

Tony George já exercia funções administrativas na USAC, chegando mesmo a ser vice-diretor financeiro da chacela. Ele também pilotava por esporte, chegando mesmo a correr na Indy Lights, pela equipe da AJ Foyt, um ano antes de assumir a presidência do IMS com apenas 30 anos de idade.

Junto com essa ideia de mudanças mais ousadas e um presidente mais 'ousado' ainda. A ideia inicial era expandir a quantidade de eventos, bem como o marketing e a qualidade dos eventos; entretanto, a forma de conseguir isso, como veremos nas outras postagens, não foi lá tão ortodoxa.


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As equipes grandes queria alçar voos mais longos, as equipes pequenas queriam sobreviver sem ter que quase morrer a cada pré-temporada e o IMS ninguém sabia ao certo o que queria. Foi nesse clima amistoso que o automobilismo americano de monopostos entrou na década de 1990, e as desavenças começaram logo com um detalhe do regulamento daquele ano.
Mudanças consideráveis de 1989 a 1990.
Uma coisa que USAC, CART, os times grandes, os times pequenos, o IMS e até o público concordavam é o aumento da segurança e uma segurada de leve nas velocidades alcançadas. Mesmo com apenas uma morte nos anos 80 (Jim Hickman em Milwaukee, 1982, R.I.P.), a categoria ainda era profissional em quebrar ossos e membros. Uma medida para conseguir maior segurança envolvia a diminuição das velocidades atingidas, principalmente nos ovais mais longos.

A sugestão dada pela direção da CART foi a diminuição do efeito solo, trazendo a asa traseira um pouco mais para frente e fazendo mudanças no assoalho do carro. Assim, os carros andariam mais lentos nas longas retas dos ovais mas não perderiam grande estabilidade nas curvas nem nas retas menores dos circuitos mistos. Os donos das equipes maiores (Penske, Patrick, Newman-Haas, Galles e a novata Ganassi, que ascendeu ao posto devido ao apoio do próprio Penske) adoraram. A maioria das outras equipes e todo o resto cuspiu sangue por todos os orifícios.

Esse novo regulamento faria com que apenas os chassis produzidos ou modificados sob as novas regras poderiam correr na temporada de 1990, estes que custavam de trinta mil  (a modificação) até cem mil (os novos chassis) dólares a mais do que os chassis feitos no ano passado, que muitas equipes já nem tinham condições de comprar em abundância. Muitos argumentaram que existiam soluções bem mais baratas e menos drásticas de se reduzir as velocidades sem grandes mudanças aerodinâmicas que inviabilizaria o uso de outros chassis. Além disso, alguns pilotos declararam que a modificação traria maior instabilidade aos carros e os deixariam mais perigosos.

No mesmo mês, juntando-se ao coro dos pequenos, estava a USAC e o IMS, que permitiu a inscrição de chassis de 1989 e 1988 nas 500 milhas de Indianápolis de 1990. Uma situação complicadíssima se instaurou no início daquele ano.

A CART, com muito jogo de cintura não só da direção, mas também das equipes maiores, conseguiu dar um jeito e aprovar os novos carros para a temporada de 1990. Enquanto as equipes maiores daria apoio tanto técnico quanto financeiro para as equipes menores se adequarem aos novos chassis, seja remodelando os antigos ou proporcionando mais testes com os novos, toda a estrutura da CART sofria uma grande mudança. 

Detectou-se esse problema da pouca representação das equipes menores, então houve uma mudança no comitê de diretores da categoria, que tinha 21 membros mas alguns já não possuíam equipes ou casos de dois ou três sócios de uma mesma equipe; a reformulação retirou onze dos antigos diretores, e abrigou mais treze novos membros. Apenas algumas equipes que disputavam apenas as 500 milhas de Indianápolis ficaram de fora do comitê. Algumas mudanças, como os chassis serem todos em fibra de carbono, foram adiadas para 1991 ou mais a frente ainda, e o então presidente da CART, John Caponigro, foi dispensado. Com essas mudanças todas, quase nada mudou nas pistas: Penske, Newman-Haas e Galles continuaram dominando e todos ficaram felizes por mais uma temporada, menos o pessoal do IMS.

No lado da Indy 500, os chassis antigos foram permitidos, mas  os chassis produzidos em 1990 se mostraram melhores e os pilotos de chassi novo e motor Chevy A dominaram tudo, destaque para Stan Fox que AOMILHOU e bumpeou metade dos competidores com seu chassi de 1987 e motor Buick remanufaturado de 1986. No dia 27 de maio de 1990, cerca de 400 mil pessoas receberam a cura para a insônia pois, caso se lembrassem dos lances da prova, com certeza cairiam no sono. 
Cagando para regras, chassis, brigas e até para o bom gosto em pinturas, Stan Fox, classificou isso para a Indy 500 de 1990. Não é o Stan Fox na foto.
Quem também caiu foi a audiência, e para patamares nunca antes vistos. Os 7,4 pontos Nielsen de média foi a menor audiência desde os primórdios das transmissões televisivas da Indy 500, e a prova ficou muito próxima de perder para a Daytona 500, novamente. Essa nova queda na audiência deixou o IMS com a pulga atrás da orelha, e Tony George um pouco mais aborrecido, pois as mudanças nos negócios e o aumento no público foram as plataformas para a entrada dele na presidência do IMS, e tudo o que ele havia feito foram mudanças em algumas locações do autódromo para sua modernização.

George percebeu que, talvez, conseguindo se aliar a CART ele obtivesse mais êxito em apresentar um espetáculo melhor nas 500 milhas de Indianápolis, já que a mesma não compactuava com suas ideias logo de cara. Para tal, George se aproximou do novo presidente da CART, Willian Stokkan. Stokkan tinha ideias para melhorar a CART no sentido dos negócios e entreterimento e, para tal, pretendia utilizar algumas ideias oriundas da NFL, como a representação por franquias e outros detalhes para melhorar o entorno das provas e as transmissões.

Após um ano de conversas, em meados de 1991, George faz a proposta de uma comissão conjunta da CART e de vários outros representantes, que seria permanente e tomaria todas as decisões com relação a todas as competições envolvendo os Indy Cars. Era, basicamente, uma proposta de fusão da CART e USAC.

Essa proposta pode ter duas interpretações diferentes:

- George se aproxima de Stokkan com o intuito de se fortalecer perante os donos de equipes da CART, onde ele e o IMS possuem poucos aliados. Para retirar todos esses donos do caminho, usa sua influência e propor um novo tipo de conselho da CART, com um representante de cada faceta das corridas (um dono de equipe, um  representante das fabricantes, um dos autódromos, etc.). Assim, ele poderia mais facilmente influenciar o conselho para seu lado, pois ele seria o óbvio candidato do representante dos autódromos, e dar o golpe para retomar toda a importância dos Indy Cars para si.

- George se aproxima de Stokkan, pois é o meio menos impossível de voltar a atar relações com a CART, já que não se dá muito bem com a maioria das equipes. Após um ano de boas relações, ele sugere um conselho menor e permanente pois, na visão dele, ter um conselho que se reúne duas ou três vezes por ano dificulta as tomadas de decisões. Obviamente, George se inclui na ideia da comissão permanente.

Seja qual for a interpretação correta, Stokkan nem consultou o comitê dos diretores da CART e rejeitou a proposta, mas a derrota da ideia de George não foi completa, pois possui uma certa lógica sua linha de pensamento. O presidente da CART lhe escreveu uma carta, sugerindo um comitê interino formado por vários representantes para analisar as principais questões envolvendo os Indy Cars em fevereiro de 1992.

Tony George interpreta isso quase como um ultraje pois lhe ficou parecendo que toda a USAC foi rejeitada pela CART, seus diretores e todo seu mundo. A partir daí, seus planos, ideias e ações tomam um rumo completamente diferente, mais ousado e destrutivo, para a ressurreição do Indianápolis Motor Speedway.

Tudo começou com uma ação simples: o IMS registou a CamelCase "IndyCar". Parece uma ação  tão simples que nem a CART se deu o trabalho de brigar por isso mas, olhando do futuro para o passado, ela está cheia de simbologia. Basicamente, o Indianápolis Motor Speedway estava monopolizando o nome dos monopostos americanos para si, e já dava prenúncios de que não ficaria apenas no nome.




Essa postagem faz parte da série "A cisão de 1996" que também conta com:
1. Prólogo: IndyCar x Indy Car.  (este que você lê)

2 comentários:

  1. Belo texto!
    Sendo eu um fã da CART, via a cisão e a "vilania" de Tony George como uma mera birrinha, uma questão de EGO apenas.
    Desconhecia completamente este fato de haver uma diferença (grande) entre os times grandes e pequenos, no que diz respeito a dinheiro e desenvolvimento de carros, pois sempre achei a Indy bem competitiva e automaticamente associava isto a um razoável equilíbrio entre todos. É bastante compreensível a revolta destes times pequenos contra os grandes e também contra os gestores da CART, a ponto de pensarem em criar um campeonato concorrente para atenuarem estes desequilíbrios. Porém, acho que eles não alcançaram este efeito (totalmente), pois na IRL houveram também os times de ponta e com o passar do tempo as diferenças aumentaram também. Repararam que os únicos times que figuraram e protagonizaram os anos iniciais da IRL (e que ainda sobrevivem) são a AJ Foyt e a Schmidt? E hoje eles não são times de ponta, pois, os times mais significativos (ou não) são todos oriundos da CART (!), entre eles tem-se: Penske, Chip-Ganassi, Andretti, KVSH (ex-PacWest), Dale Coyne Racing, Rahal Letterman...
    A CART também teve culpa no caso todo, esta decisão do diretor Willian Stokkan de rejeitar a proposta do Tony George, sem discutir com os diretores da CART, foi péssima. Ele provocou o outro lado que já estava com os ânimos acirrados, incentivando o "Tonho Jorge" a agir contra os interesses da CART.
    Enfim, o texto foi bem informativo, ajudou a entender o outro lado também. Vou aguardar o próximo.

    Um abraço!

    Karl

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  2. Bom texto... se vc observar 2 dos donos de equipes que eram mais fervorosos contra as idéias de TG foram os primeiros a se bandear depois pra IRL... logico ganhavam muito dinheiro das montadoras , e apos lucrarem muito principalmente com as japonesas na CART foram fazer o mesmo depois na IRL.

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